UM EXEMPLO DE VIDA

       
   
     ‘Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria’. Uma música tão bem lembrada em minha infância. Começa e termina com aquela senhora que não é Maria, nem Francisca, nem Aparecida, mas que, como na música, se refere à lata d’água, quantas e quantas ainda carregam para suprir as necessidades da família (água, alimento, banho).
     Fugi só um pouco do que quero escrever, hoje ao passar de ônibus para pegar as crianças do sítio, comecei a olhar as árvores, gado, plantações... De repente, ah! Que lembrança veio! A vi ali com a lata d’água na cabeça, minha guerreira vozinha, íamos de vez em quando passear em sua casa, eram mais ou menos quinze horas de viagem, passávamos as férias da escola em sua casa. Para mim tudo era divertido.
     Final de ano, aquela seca, o poço mais próximo secava, não tinha outro jeito senão ir a um mais longe e íngreme. Vozinha pegava a lata de vinte litros, eu, minha irmã e meu tio – dois anos mais novo que eu, umas latas menores para nós. Descer era muito fácil, para subir era a questão. Lá vai vozinha, um metro e meio de altura, esguia, mas guerreira, chegava ao poço, retirava a água e já aproveitava para aguar as verduras que tinha, todos os dias. Percebo hoje o quanto aquela mulher lutou, depois de vinte e quatro anos, mas o que mais me tocou hoje foi lembrar com tanta clareza: voltei ao poço em meus pensamentos e vi cada gesto, a sua subida com a lata suando, cabelos já brancos e com apenas cinquenta e um anos, rosto queimado, rugas, olhar de ternura, preocupação de mãe, esposa exemplar, vozinha maravilhosa.
     Sim, Duzolina Carrilho, nome de guerreira. Se chorou ninguém viu, se sofreu, calou-se. Palavra de baixo calão nunca ouvi, nem piadas admitia que tivesse algo feio. Se teve dor, não disse. Se sofreu decepções com tantas mudanças da vida. Respeitou o esposo e cuidou sempre de todos e de tudo.
     Nunca notei nada de diferente. Ir na casa dela, como escrevi, era diversão. Cama de palha, luz de lampião, chão da cozinha batido de terra, água de poço. Lavar, às vezes, água no rio mais próximo as roupas levadas por uma égua, lá estava ela abaixada no rio com sabão de pedra feito em casa. Lavando sem reclamar, sem lamentar. A única coisa era a sua oração para Deus mandar chuva. Tudo tão simples, mas tão limpo. Comida de fogão à lenha – que delícia! Tudo diversão. Hoje sei que enquanto era diversão, minha vozinha lutava para cuidar de todos.
     Senti uma vez em seus olhos o quanto meu pai era querido por ela, talvez pela distância, por ele ter ido viver longe tão cedo – com dezessete anos, nem sempre ele podia visitá-la. Também vejo nos olhos de meu pai o quanto ele sente falta dela, o quanto ele queria trazer a família para mais perto, o quanto ele queria dar a ela o que ela merecia.
     Para muitos ter pia, tanque, água encanada, luz elétrica, um banheiro com vaso sanitário, um chuveiro, um fogão, cama de mola é normal. Nada disso ela teve, mas nunca se lamentou. Vivia com o que tinha. Fez de tudo um meio de fazer o melhor por todos.
     Acredito hoje que ela esperou sua última visita (do meu pai). Dois meses depois, com cinquenta e dois anos, ela teve dores. Teve que viajar para um lugar onde tinha hospital. Recebemos uma carta de que ela não iria sobreviver. Choque total para nós. Hoje vejo lágrimas em seus olhos quando se refere a minha vozinha. O tempo passou, trinta e quatro anos depois, ainda sofrimento em seu olhar (meu amado pai).
     Hoje vi tão poucas coisas da minha rotina, mas me lembrei de você, minha vozinha guerreira. Você é um anjo que veio, trabalhou para Deus, cumpriu seu destino e deixou muita saudade. Nosso orgulho, nosso amor, respeito, humildade, simplicidade, educação, fizeram parte da sua vida, mesmo quando tudo para mim era diversão. 

     28/04/2014 - Edmary

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